Sonarq entrega pontualmente subsídios
contra obstrução da estrada histórica
O presidente da Sociedade Norte-rio-grandense de Arqueologia e Meio Ambiente (Sonarq), historiador, antropólogo e arqueólogo Walner Barros Spencer, concluiu ontem, conforme prometera na última sexta-feira, a elaboração dos subsídios que se encarregou de fornecer ao advogado Marcílio Mesquita de Goes para que este denuncie formalmente ao ministério público estadual obstruções de passagem impostas a estradas litorâneas do Rio Grande do Norte por interesses privados.
Sem poder apresentar as imagens que incorporou a seu documento, a exemplo do que fez o engenheiro Levy Pereira, presidente do Natal Landclub, ao apresentar seus subsídios à denúncia de Marcílio, Notícias de Jipeiros transcreve na íntegra o texto de Spencer. Ei-lo:
Histórico da área
A área objeto desta peça foi percorrida por grupos migrantes que se deslocaram pela costa brasileira quando a mesma, nesta latitude, há alguns milhares de anos, era mais dilatada, estendendo-se por mais algumas dezenas de quilômetros, devido aos movimentos eustáticos do mar, como decorrência dos picos de glaciação. Tais grupos de caçadores-coletores colhiam pequenos animais flúvio-marinhos e diversos tipos de crustáceos e moluscos comestíveis, suplementando essa dieta com a caça de pequenos animais. Vestígios eventuais dos grupos humanos muito antigos, anteriores a 8-10 mil anos estariam cobertos pela água do mar e, consequentemente, inacessíveis e sem possibilidade de encontro e descoberta.
Cerca de 500 anos antes que os europeus chegassem, tribos de cultura Tupi instalaram-se na região, tendo então deslocado os grupos ditos tapuias para o interior das terras. Os indígenas de etnia Tupi, além de serem horticultores, correspondendo a plantadores incipientes, utilizavam magistralmente a simbiose ambiental do local, i.e., o encontro de tipos diversificados de elementos de sobrevivência, a saber, o ambiente marítimo, o lacustre, o fluvial e o terrestre. Destarte, conseguiam mais fácil e mais rendosa existência, ainda mais considerando outras características da região, como a existência próxima de enseadas costeiras e de barreiras de pedras – beach rocks -, que facilitavam a pesca marítima por causa dos movimentos do plâncton devido às correntes de convecção, por um lado, e de nicho ambiental protegido, por outro.
É de considerar também as desembocaduras de rios e lagoas, a piscosidade das lagoas, assim como o clima favorável, com chuvas regulares, a permitir o plantio da mandioca, principalmente. Os Tupi eram grupos com razoável avanço e sofisticação em sua organização social, sedentários, bravos e agressivos combatentes, antropófagos, exímios canoeiros e experimentados pescadores, possuindo excelentes técnicas de construção de armadilhas para peixes. Os representantes da cultura Tupi no território atual do Rio Grande do Norte eram os Potiguara, que exerciam o comando do rio Jaguaribe, no Ceará, até a atual divisa com a Paraíba.
A partir do século XVI, diversos navegantes europeus estiveram nesse litoral, nomeando-o e tornando-o conhecido nos portulanos e cartas de marear. Os franceses, no entanto, que dominaram a costa oriental norte-rio-grandense por décadas, não se estabeleceram, ao que parece, na lagoa de Guaraíras, nem a citam como local de refúgio e refrigério, embora fizessem uso de Baía Formosa, da Ponta de Pipa e da barra do rio Curimataú. Não consta que fizessem comércio com as aldeias que existiam no entorno da lagoa, talvez por não existirem enseadas próprias para desembarque na região. Gabriel Soares de Souza, por exemplo, em sua descrição da costa brasileira, em 1587, não menciona a lagoa de Guaraíras.
A área terrestre objeto deste estudo foi transitada exaustivamente durante os três primeiros séculos da história do Rio Grande do Norte, pois era o caminho que ligava a Capitania à Paraíba, Pernambuco e Bahia. Por ela passaram as tropas comandadas por Feliciano Coelho quando, em 1598, vieram reforçar e garantir a continuação da construção do Forte dos Reis, na margem direita do Rio Grande (Potengi).
No mapa de João Teixeira Albernaz, na obra Livro que da Rezão do Estado do Brasil, de 1612, aparece o desenho da lagoa, a qual chama de Gvaíra, a sudeste da Aldeia de Antônia, e onde é assinalado um canal de comunicação com o mar, que recebe o nome de Paranabuc. De outra feita, na Corografia Brasílica , de Manuel Aires de Casal, em 1817, está escrito que a lagoa de Groairas deságua no rio Tareiri, aliás, Garatuni (o atual Trairi).
A colonização do território inicia pela doação de datas de sesmaria ao sul de Natal, ao longo dos rios permanentes, das lagoas, especialmente quando incluía portos de pescaria, como foi o caso de João Lostão Navarro, que recebeu terras, em 1600, na foz e ao longo do rio Traíri -na realidade, o Camurupim atual. Para Tavares de Lira , isso era lógico, pois vinham do sul “as forças que combatiam e expulsavam potiguares e franceses – estes nas proximidades dos portos e aqueles no interior até a Serra de Copaoba (Serra da Raiz). Do sul tinham vindo as expedições militares e para ele tinham voltado. Os pontos e os lugares eram explorados e as estradas conhecidas”.
Lostão foi bem sucedido em seu empreendimento, tendo criado um local que atraiu outros moradores. Lira e Varnhagen consideram que possuía engenho de açúcar, coisa que Cascudo discorda. No relatório de von der Dussen – citado por Wätjen -, o Rio Grande possuía dois engenhos. De qualquer maneira, Lostão era possuidor de diversos escravos da Guiné, fazia roças e tinha construído benfeitorias. É para suas casas que se recolhem os fugitivos da matança do Engenho Cunhaú, perpetrada pelos holandeses, em 1645.
Outro importante sesmeiro na região foi o Padre Gaspar Gonçalves da Rocha, vigário da Matriz, que recebeu a doação em 1601. Conrado Lopes, Antônio de Souza, Jerônimo de Athayde, Henrique Teixeira, Gregório Pinheiro, Manoel Rodrigues Pimentel, Belchior de Espínola, e outros, eram donos de terras de sesmaria nas margens da lagoa de Guaraíras, nas margens dos rios Ararai, Traíri e circunvizinhanças.
A lagoa de Guaraíras esteve, no mínimo durante os primeiros séculos da colonização portuguesa, integrando a parte economicamente mais importante da Capitania, pois o distrito de Cunhaú, ali perto, possuía praticamente o único engenho produtivo – safrejava cerca de 6.000 – 7.000 arrobas de açúcar anuais -, quase toda exportada para Pernambuco.
Um engenho moente de tal envergadura necessitava de muito gado para o trabalho no estabelecimento, fosse para servir de alimento, fosse para trabalho. Os campos varzeanos do entorno da lagoa eram locais ideais para a pecuária de então.
A lagoa era menor do que a atual em volume de água por não ser afetada pela maré devido à ausência de ligação entre um e outro. Dependendo única e exclusivamente das águas dos rios e das lagoas circunvizinhas, e das águas vertidas dos mananciais de dunas, não poderia ter a mesma extensão do espelho de água que apresenta hoje. Assim, grande parte estava descoberta formando extensas várzeas, onde pastava enorme quantidade de gado.
Este fato é confirmado pelas pessoas mais antigas do lugar, e que o conheceram antes da ruptura da barra, em 1924. Dizem os mesmos, inclusive, que existiam, no local, extensas plantações de cana-de-açúcar.
A região de Guaraíras sempre foi um local de fácil subsistência devido aos ambientes diversificados que englobava, ainda mais quando a lagoa era de água doce, tendo atraído, assim, durante grande parte do tempo colonial, uma população rural considerável que ocupou as suas imediações.
O entorno da lagoa era passagem obrigatória de quem vinha da Paraíba, pois nele é que existia a primeira estrada da Capitania – e assim se manteria por séculos – suportando um numeroso trânsito, relativamente à época, o qual, vindo pela Baía da Traição ou Mamanguape, Tamaranduba, Cunhaú, Goianinha, Guaraíras, infletia para Mipibu, Potengi, Utinga, ou ainda, seguindo o vale do Cajupiranga, direto a Natal, neste último caso a escoteiro, isto é, sem carga, e assim mesmo muito raramente.
Havia outras variantes, mas sem grandes modificações de rumo. Isto vai perdurar até inícios do século XIX, e a estrada terá de uso regular e costumeiro, ao menos até a débâcle econômica da área.
O caminho utilizado na época, bem conhecido e trilhado, tornara-se seguro desde que os Potiguara haviam acordado e celebrado um tratado de paz e amizade eternas com os luso-espanhóis, em 1599, na cidade de Filipéia, na Paraíba, hoje João Pessoa.
Como aconteceu quase sempre nas movimentações terrestres coloniais, o caminho deve ter sido, anteriormente, uma trilha indígena a qual - dentre outras funções - ligava uma aldeia a outra. Em seu trajeto e no eixo do caminho existiam muitas aldeias. Algumas delas, constando de documentos, mas a maior parte delas não tendo sido descoberta ainda. Vestígios existem aqui e ali, mas somente uma pesquisa sistemática aliado a um árduo estudo histórico-cartográfico poderá recuperar tal conhecimento extremamente importante para a cultura do Rio Grande do Norte, sendo base e fundamenbto para o fortalecimento da identidade de nossos co-estaduanos. Tal pesquisa está presentemente sendo realizada e se encontra em estágio bastante avançado.
Ao tempo da conquista flamenga, em 1633, a zona considerada já apresentava população em toda a faixa litorânea, e “numa zona de algumas léguas para o interior, a corrente migratória estava definitivamente encaminhada, notando-se ao longo da costa e às margens dos rios Pitimbu, Pirangi, Traíri, Jacu, Curimataú, Guajú e outros um trabalho persistente e intenso de desbravamento do solo” como afirma Tavares de Lira . A região mais trabalhada pelo flamengo foi o agreste, de Natal até Canguaretama, com a relativa proteção garantida pela proximidade “das guarnições holandesas, comboiadoras dos produtos para Recife, embarcando-se em Natal e nos portos da embocadura dos rios (Pirangi, Camurupim, Barra de Cunhaú)”, de acordo com Cascudo .
Em 1630, Adriano Verdonck, comerciante holandês metido a espião, ao viajar para Natal, através do Cunhaú e de São José de Mipibú, passa pela trilha usual que bordejava a lagoa de Guaraíras. É quando informa que os núcleos de povoação não iam além de cinco milhas para o interior. A trilha aludida, que serviu durante séculos aos viajantes, soldados e aventureiros, aparece claramente delineada no mapa de Marcgrave, do século XVII, onde, inclusive, aponta dois currais, um perto da lagoa Papeba e outro ao sul de Guaraíras, com estrada que leva a Sibaúma. Por esta trilha andou a tropa combativa de Luiz Barbalho Bezerra quando de sua épica jornada de Touros até a Bahia, em meio a entreveros e escaramuças com os holandeses que buscavam sustar seu prosseguimento.
O caminho apresentava uma variante que a partir da altura do povoado Campo de Santana velho, então existente, indo pelo norte do Morro da Fumaça, demandava os estabelecimentos de João Lostão Navarro, na foz do atual rio Camurupim, de onde era possível atingir Natal.
Guaraíras, como região, foi de enorme importância para a estratégia de conquista e manutenção do domínio holandês da Companhia das Índias Ocidentais, no Nordeste brasileiro, pois era um celeiro de mantimentos e um manancial de criação de gado. Segundo Hermann Wätjen, “o maior fornecimento de reses para o consumo era feito pelos criadores de gado do Rio Grande.
Em 1635, os Conselheiros Políticos exaltaram a conquista final desta Capitania, como um benefício inestimável da fortuna. Sem o Rio Grande, os soldados hollandezes tão miseravelmente tratados, com os sós recursos dos armazens, ficariam condenados a morrer de fome; sem o Rio Grande a alimentação da população de Pernambuco, em constante crescimento, seria uma cousa impossível... o bem estar da Colonia dependia de um abastecimento de carne, seguro e regular; e que sem bois de trabalho os plantadores de canna... jamais poderiam por em actividade satisfactoria a fabricação do assucar” . Mais importante se tornou a região depois que os holandeses perderam o controle sobre o gado das margens do São Francisco. Joan Nieuhof informava em relatório que “No lago de Groaíras há uma quantidade incrível de peixes e a região produz farinha em grande escala. Daí vieram os fartos abastecimentos de carne e peixe para as nossas guarnições da Paraíba e outras partes, durante a rebelião dos portugueses”.
Negar o acesso dos flamengos aos gados riograndenses foi um dos motivos das razias dos combatentes pernambucanos, principalmente na amplitude da região em estudo – Cunhaú, Canguaretama, Guaraíras – incluindo o combate e a destruição da ‘casa forte’ da Ilha do Flamengo, na lagoa, em 05 de janeiro de 1648. Essas investidas sempre recolhiam muito gado, como nessa última citada, em que Vidal de Negreiros mandou que se recolhesse cerca de 2.000 cabeças.
Sigamos, por um instante, a narrativa deste combate, narrada por Cascudo, e segundo o Castrioto Lusitano, de Frei Raphael de Jesus, contemporâneo daqueles acontecimentos. Ele inicia com a chegada das tropas de Vidal de Negreiros ao local:
Avistou um sítio, que chamam as Guaraíras, onde o inimigo sustentava uma casa forte no centro duma lagoa larga e funda, dentro da qual, como em ilha, se alojavam todos os índios e escravos que o Holandês ocupava nas roças e lavouras daquele terreno; e se recolhiam os frutos e os roubos de que se sustentavam, guardados e defendidos de quarenta holandeses, que com outros soldados-índios guarnecem a fortificação; constava desta casa forte que era cercada de duas trincheiras bem obradas.
Chegou ao escurecer, atravessando a lagoa com água pela cintura e atacando imediatamente. O chefe holandês e cinco companheiros mais prudentes tomaram de uma canoa, fugindo sem bulha e matinada. Henrique Dias passou a noite matando. Pela manhã não existia gente com vida na fortificação. Soldados flamengos, negros escravos, mulheres, estavam mortos. “Levaram tudo à ponta de espada não perdoando sexo nem idade”, escreve Frei Rafael de Jesus. Era o dia 6 de janeiro de 1648. Na manhã seguinte o Governados dos Pretos partiu para devastar o Cunhaú. Os holandeses voltaram e reconstruíram a casa forte.
Em agosto de 1651 o capitão João Barbosa Pinto apareceu como um furacão sobressaindo “no assalto e queima da aldeia das Groayras retirando mais de duas mil cabeças de gado e passante de duzentas almas, entre mulheres e meninos que estavam em poder do holandês, deixando toda aquela campanha abrasada.”.
No fortim existiam dois canhões de ferro. Retiram-nos nas primeiras décadas do século XX. Um ficou num sítio em Patané à margem da lagoa, e outro enterraram até o meio numa esquina da hoje cidade de Arêz, ao lado de Papeba. Cascudo as viu em 1932.
Os muros do fortim esboroaram-se e o arvoredo tudo cobriu. Muitas pedras foram retiradas para serviços na redondeza. Será difícil localizar o sítio exato onde a casa forte se ergueu. A ilha guardou o nome recordador. Chama-se Ilha do Flamengo.
Durante todo o tempo de guerra, as tropas de ambos os lados se movimentavam pela trilha que margeava o lado leste da lagoa, em suas idas e vindas. O gado pastava nas várzeas hoje inundadas. É provável que se plantasse cana-de-açúcar em alguns lugares propícios para o fim. É de presumir, também, que possuísse locais de vigilância, apoio e guarda das tropas itinerantes e dos viajantes.
O trajeto dessa trilha secular ainda persiste em parte embora tenha tido sua ambientação modificada por plantações comerciais de coco e de caju. Ela está bem demonstrada no mapa de Marcgrave (Figura 02) e devido ao relativo isolamento da área ainda pode ser reconhecida e transitada, constando, inclusive, das cartas da Sudene com escala favorável ao seu delineamento.
Finda a conquista holandesa, restaurado o domínio português, em poucas décadas retorna a azáfama militar, devida à revolta geral dos indígenas do sertão, que se prolongará, intermitentemente, de 1680 até o início do século XVIII. Embora essa guerra indígena não alcance vigorosamente a região pesquisada, teve efeitos sobre ela em razão da insegurança que gerou entre os colonos.
Por tal razão é que foram, em algum tempo, construídas diversas casas fortes, redutos fortificados geralmente à beira dos caminhos, em locais de valor estratégico, de passagem obrigatória, como a estrada litorânea que passava em Guaraíras, e nos lugares mais povoados da Capitania, como era o caso das casas fortes da própria lagoa, de Tamatanduba, Cunhaú, Goianinha, Mopibú, Potengi, Utinga, Guajiru, em 1687.
Em fins do século XVII, em 1691, já existe o aldeamento jesuítico de S. João Batista de Goaraíras, num elevado sobranceiro à Lagoa de Guaraíras. Os jesuítas trabalhavam organizadamente, defendendo o indígena contra a avidez do lavrador. Instruíam aos jovens de ambos os sexos ofícios e afazeres domésticos próprios e os rudimentos da leitura e escrita.
A Companhia de Jesus foi abolida em 3 de setembro de 1759. Logo após, abandonaram o aldeamento para as autoridades portuguesas. Este irá decair até extinguir-se totalmente, restando somente vestígios funerários no topo do morrote sobranceiro à cidade atual de Sen. Georgino Avelino, e que foi arqueologicamente escavado pelo Prof. Nássaro Nasser, do Museu Câmara Cascudo, na década de 70-80.
O século XVIII assistiu à expansão pecuária na Capitania, quando a ocupação das terras se estende para o interior e os currais de gado ocupam as ribeiras dos rios intermitentes, fazendo pião nos olhos d’água. Concomitantemente, desde o final do século XVIII, o plantio do algodão se firma na região sertaneja. Novos caminhos são abertos – as estradas das boiadas -, novos rumos econômicos surgem e, paulatinamente, a lagoa de Guaraíras, como região pontual, vai perdendo importância econômica, militar e política. A velha trilha é gradativamente descontinuada e abandonada, restando tão somente como ligação vicinal de pequenas povoações, pois novas estradas são estabelecidas. Não obstante, ainda será palmilhada até meados dos novecentos.
Desde a década de 1850, os vales começam a ter melhor aproveitamento econômico, especialmente com o plantio da cana e a produção de açúcar. No decorrer de 1860, por exemplo, há um súbito acréscimo dessa indústria em toda a Província. Existia, então, no território norte-rio-grandense, 173 engenhos efetivamente trabalhando, todos de ferro, excetuando 12, que eram de madeira. Quase todos se localizavam aos vales do sul, Capió para cima, onde se inclui a região de Guaraíras e arredores.
Assim, fica estabelecido que a região suportou o trânsito de populações migratórias há alguns milhares de anos, além de ter sido local de acampamentos temporários de pesca para populações indígenas que viviam no derredor da lagoa de Guaraíras, inclusive grupos proto-históricos e históricos.
Outro fator primordial no arrazoado é o fato de que parte da primeira estrada colonial da Capitania, assinalada em mapa do Marcgrave, no século XVII, ainda é discernível no terreno, em seu rumo e direção geral, embora tenha sofrido diversas alterações no decorrer dos séculos. Partindo desse pressuposto, é possível reconhecer-se ao longo do leito da trilha, e no seu entorno, os vestígios e marcas dos lugares de pouso e de descanso dos viajantes, bem como eventuais postos de defesa e vigilância.
Desde que Marcgrave aponta a existência de currais de gado e de moradias ao longo da trilha, e levando em consideração, adicionalmente, a provável construção de casas fortes no eixo desse caminho deve-se atentar para o evidenciamento de estruturas condizentes com tais construções, não obstante as grandes alterações antrópicas que a região sofreu com o plantio comercial de frutas e a fabricação artesanal de carvão vegetal, especialmente a segunda, pelo seu enorme potencial de revirar o solo, misturar objetos e destruir estratigrafias.
Considera-se a existência de três agrupamentos humanos que teriam tido lugar ao longo da primeira parte desse caminho, até Campo de Santana velho, antes das primeiras duas décadas do século XX: Camboa, Cabarú e Marcos , os quais não só constam de mapas municipais, como ainda são lembrados pelos moradores mais antigos da região, por sinal, hoje desabitada, embora as estruturas não tivessem mais presença física nos locais aludidos.
A informação popular deu a conhecer, também, a existência de um engenho no local chamado Marcos, cujas construções teriam derruído desde a década de 1940-50.
É de considerar que de Guaraíras tem uma dinâmica especial quando geomorfológicamente considerada, pois sua paisagem sofreu modificações radicais. Embora apareça comunicando-se com o mar, em mapa de 1612, como visto na parte histórica deste trabalho, ela é considerada, no restante dos cartógrafos e cronistas, como não tendo tal ligação com o mar, ao menos até 1924, quando uma grande enchente ligou a lagoa ao mar, criando um canal que se denomina canal de Tibau.
Anteriormente, portanto, a lagoa era de água doce e infensa, naturalmente, aos movimentos da maré. Dessa forma, excluída a contribuição da maritimidade, e contando tão somente com a contribuição dos rios que nela despejam suas águas – nenhum deles de grande volume -, a extensão da lagoa, e o seu diâmetro, eram menores. Como conseqüência, havia grandes várzeas em seu derredor, pois a lagoa é de baixa profundidade em sua maior parte.
Nessas várzeas, corriam pequenos riachos, sendo que um deles passava perto do sítio do “engenho”, em Marcos, conforme lembrança de antigos moradores.
Com o rompimento da barra e a correspondente salinização da água, o plantio da cana-de-açúcar teria sido inviabilizado causando uma súbita mudança nas condições econômicas do local. O resultado foi o abandono dos lugarejos habitados nas redondezas, e que sobreviviam em função dos trabalhos canavieiros.
A salinização da água teria conseqüência, igualmente, na gradativa criação de mangues, pois os que existem atualmente ao redor da lagoa são relativamente recentes.
Entende-se que a compreensão dessa dinâmica é de vital importância no planejamento do reconhecimento arqueológico, pois deve levar em consideração as mudanças ocorridas no litoral histórico.
Uma vez a trilha atual sendo identificada como praticamente sobreposta a primeira estrada colonial da capitania, como visto anteriormente na parte histórica, a mesma foi percorrida, a cavalo, em toda a sua extensão – até Campo de Santana velho - com a atenção voltada à paisagem e a eventuais vestígios históricos (Foto 03).
Praticamente a meio caminho da trilha, em local descampado, com árvores esparsas, mas de boa sombra, próximo ao lugar chamado Camboa, onde teria havido moradia, nas coordenadas de S 6o 10.151’ e W 035o 06.088’ encontrou-se um fragmento de vasilhame (garrafa) em grés , semi-enterrado na areia. O vasilhame era vitrificado por dentro (Foto 01). Tal tipo de recipiente de envasamento ainda era usado no século XIX, mas recipientes deste material eram usuais desde o século XVI. Poucas centenas de metros mais adiante - em direção da barra -, foi encontrado parte do fundo de um prato de faiança em que se via o carimbo Villeroy & Boch , correspondendo a uma fabrica inglesa de faiança (Foto 02).
À direita da extremidade norte da trilha, em um elevado, existe o antigo cemitério de Campo de Santana que, embora com alguns túmulos demolidos ainda está murado e em razoável estado de conservação.
As estruturas construtivas que foram encontradas na beira da trilha eram todas modernas e pertenceram a pessoas conhecidas pelos moradores antigos da região. Todas eram pequenas casas, as quais foram desmanchadas para reaproveitamento do material, como é usual.
A extremidade Sul da trilha foi tomada por uma duna móvel.
É inegável a importância histórica e patrimonial desta área, que foi preservada principalmente pelo isolamento causado por um desastre ecológico de grandes proporções, fato que tirou as condições locais de ser explorado economicamente de maneira extensiva.
Na ponta sul da trilha, a cerca de 200 metros do promontório do engenho existem ruínas submersas de uma construção muito antiga, que bem pode ser a casa de fim de caminho que deveria existir por tipologica e analogicamente.
Um pedaço muito grande de alguidar cerâmico indígena (Foto 15), usado para cozinhar, pois tinha o fundo enegrecido, foi encontrado semi-enterrado na areia da praia, quando da baixa mar. As ruínas das paredes desmanchadas podem ser vistas sob a água clara.
O local tem sofrido uma erosão muito rápida e de grande porte, desboroando a pequena falésia que está de fronte e fazendo cair coqueiros antigos. Segundo informantes, o local é muito fundo alguns metros após a praia, o que impediu uma investigação mais acurada
No pequeno trecho de praia defronte às ruínas submersas são encontrados, vez ou outra, pedaços de tijolos incrustados de mariscos (cracas), demonstrando uma prolongada permanência sob a água. Também são encontrados pedaços de cerâmica, assim como, de maneira pitoresca, um raspador lítico não muito bem trabalhado, que nos remete ao mundo indígena, provavelmente tapuia, daqueles que foram aliados dos holandeses.
FONTE: Notícia de Jipeiros, n° 656/2008, de terça-feira, 1º de abril de 2008 (escrita pelo Jornalista Roberto Guedes.
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